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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
16/07/2010 01/01/1970 4 / 5 4 / 5
Distribuidora
Duração do filme
114 minuto(s)

À Prova de Morte
Death Proof

Dirigido por Quentin Tarantino. Com: Kurt Russell, Rosario Dawson, Zoë Bell, Vanessa Ferlito, Sydney Poitier, Tracie Thoms, Jordan Ladd, Rose McGowan, Mary Elizabeth Winstead, Quentin Tarantino, Eli Roth, Marley Shelton, Michael Parks.

Três anos. Foi este o tempo que À Prova de Morte, que Quentin Tarantino dirigiu antes de Bastardos Inglórios, levou para chegar ao Brasil – e, ainda assim, chegou em uma versão diferente da original, já que foi concebido como parte do projeto Grindhouse, que, buscando resgatar as sessões duplas concebidas na década de 30 como resposta à Depressão, trazia também o fraco Planeta Terror, de Robert Rodriguez, e vários trailers falsos dirigidos por amigos da dupla. Inicialmente com uma duração de apenas 87 minutos, À Prova de Morte era a segunda parte de Grindhouse e se apresentava como um exercício de estilo descompromissado, divertido e – o mais importante – enxuto, trazendo Tarantino numa raríssima demonstração de auto-disciplina e se estabelecendo como um de seus trabalhos mais coesos.


Isto, é claro, mudou nesta versão que agora chega ao Brasil: com 17 minutos a mais, o “novo” À Prova de Morte perdeu parte de seu impacto justamente ao se alongar desnecessariamente em cenas de intermináveis diálogos (uma marca registrada do cineasta), além de, claro, ser prejudicado por não estar mais inserido no contexto das “sessões duplas” – e, assim, os “defeitos” da película, com riscos, manchas e saltos abruptos na imagem e no som acabam surgindo deslocados, soando como uma homenagem artificial que, mesmo divertida, não se encaixa organicamente na narrativa.

Estabelecendo-se como “um filme de Quentin Tarantino” já em seu plano inicial, quando vemos a podolatria do cineasta em ação com força total, o longa se entrega sem reservas ao conceito de exploitation que se estabelecia como parte fundamental da experiência “grindhouse” – e, neste sentido, ele se coloca firmemente, por exemplo, ao lado de obras como A Vingança de Jennifer (I Spit on Your Grave) ao mesmo tempo em que faz uma clara homenagem a Corrida Contra o Destino, criando um híbrido que poderia perfeitamente ser batizado de Corrida Contra a Vingança de Jennifer. Exibindo todas as marcas registradas de Tarantino (o plano do porta-malas, as marcas de bebida e cigarro fictícias, os personagens saídos de seus outros filmes, as abundantes referências a séries e filmes obscuros e a seleção musical), À Prova de Morte tampouco se acanha diante dos corpos de suas atrizes, explorando-os com uma curiosidade adolescente que beira a veneração.

Esta veneração pela mulher, aliás, é o que torna Tarantino tão diferente de canalhas sexistas como seu amigo demente Eli Roth ou Michael Bay, já que, ao mesmo tempo em que é capaz de conceber um plano com o único objetivo de enquadrar a bunda de Vanessa Ferlito, o diretor se mostra sempre reverente diante da força feminina. Não é à toa, diga-se de passagem, que Tarantino vem continuamente concentrando a força de seu Cinema nas mulheres: se Cães de Aluguel não trazia uma única mulher com diálogos, Pulp Fiction já conferia mais atenção a figuras como Mia Wallace ainda que os homens se mantivessem em destaque. A partir de Jackie Brown, porém, o foco do cineasta muda de vez, culminando em Kill Bill Volumes 1 e 2, neste À Prova de Morte e, claro, em Bastardos Inglórios e suas fortes heroínas Shosanna e Bridget von Hammersmark. Basta compreender esta trajetória, aliás, para perceber como é natural que, aqui, o diretor continuamente enfoque suas atrizes a partir de ângulos baixos que conferem uma dimensão de “criações maiores do que a vida” às personagens.

Fugindo da clássica divisão em três atos e adotando uma abordagem mais simétrica, À Prova de Morte pode ser dividido em dois atos de igual duração: a primeira metade do filme, que se concentra na DJ Jungle Julia (Poitier) e em suas amigas Arlene (Ferlito) e Shanna (Ladd), tem a clara intenção de introduzir o tom e a atmosfera da narrativa. Investindo com menos sutileza nos artefatos de técnica e “desgastes” da película, esta seqüência se torna quase metalingüística em seu esforço de soar como uma autêntica produção dos anos 70 (embora, claro, se passe nos dias atuais) – e, assim, o bar que abriga a maior parte da ação é concebido como um espaço antiquado, com seu interior de madeira, seus neons e cartazes e, claro, o imenso jukebox usado pelas personagens. Isto se contrapõe, claro, à fotografia mais limpa e menos “defeituosa” da segunda metade, que soa mais moderna e traz um minúsculo iPod como fonte das músicas ouvidas pelas mocinhas. Esta estratégia revela o brilhantismo de Tarantino, já que reflete tematicamente a própria natureza das personagens: vulneráveis e vitimizadas no passado, fortes e determinadas no presente.

Mas não é só: bom conhecedor da linguagem cinematográfica (e de sua evolução ao longo da História), Tarantino diverte, por exemplo, ao investir numa radical mudança na trilha sonora quando determinada personagem se concentra em mandar uma mensagem pelo celular, empregando acordes melosos que, justamente pela falta de sutileza típica de produções do tipo, soam apropriadamente incorretos. Além disso, percebam como o diretor coordena sua mise-en-scène com economia na cena em que Abernathy (Dawson) tenta convencer um sujeito a lhe emprestar um carro: ocultando a presença da bela Lee (Winstead) ao fundo, o cineasta a revela apenas ao levar Dawson a deslocar o corpo no momento preciso em que oferece a amiga como moeda de troca, resultando numa eficiente punchline visual. Como se não bastasse, Tarantino se sobressai de maneira espetacular ao enfocar uma violenta colisão entre dois carros, repetindo-a a partir de diversos ângulos que revelam de forma chocante as conseqüências do acidente.

Porém, talvez a maior surpresa de À Prova de Morte seja a longa seqüência de perseguição que marca o clímax da narrativa: durando cerca de 20 minutos, ela é orquestrada por Tarantino com a inesperada segurança de um William Friedkin em Operação França ou de um Peter Yates em Bullitt, aparentemente empregando um número mínimo de trucagens digitais e investindo apenas na capacidade de seus dublês e na montagem que ressalta a ação, além, claro, dos movimentos de câmera que jamais soam epiléticos como os de Michael Bay, permitindo que acompanhemos tudo sem surtos de labirintite (e mesmo ao mover seu quadro com mais rapidez Tarantino exibe um objetivo claro, como no instante em que parece perder o vilão numa nuvem de poeira apenas para “reencontrá-lo” em outro ponto). Para finalizar, o cineasta e sua montadora habitual, Sally Menke, demonstram segurança ao contrapor estes instantes de maior energia a outros em que a câmera simplesmente passeia em torno dos personagens – como no plano que, durando sete minutos, remete a Cães de Aluguel ao enfocar a conversa de quatro amigas em volta de uma mesa (e notem a presença discreta de Kurt Russell ao fundo, comprovando a confiança de Tarantino em seu espectador).

Ainda assim, esta versão de À Prova de Morte, como dito inicialmente, peca por abandonar a disciplina do corte original – algo que já pode ser constatado na interminável conversa que ocorre em um carro nos momentos iniciais, durando longuíssimos cinco minutos e pouco oferecendo quanto ao desenvolvimento das personagens e da narrativa (para piorar, Tarantino fica preso às limitações do “cenário” e pouco pode fazer com sua câmera). Da mesma maneira, a inclusão da cena do lap dance (cortada do original como uma gag sobre as péssimas condições de preservação do filme) pode até servir como um presente para os espectadores masculinos, mas em nada contribui para o filme ou para estabelecer a dinâmica entre aquelas figuras.

De todo modo, estes pecadilhos de auto-indulgência tão típicos de Tarantino não chegam a comprometer o filme como poderiam, já que a situação criada pelo cineasta é suficientemente interessante para manter nosso interesse – e, neste sentido, é fundamental constatar a natureza fascinante do vilão encarnado de maneira impecável por Kurt Russell: apresentando-se como um sujeito afável e discreto, Stuntman Mike é um serial killer intrigante, sendo perfeitamente capaz de revelar seu lado mais sombrio num piscar de olhos (aliás, o melhor momento do filme é aquele em que ele pergunta para sua primeira vítima a direção de sua casa e lamenta ter que amedrontá-la imediatamente, já que terá que seguir no sentido oposto). Enquanto isso, Michael Parks volta ao universo de Tarantino com seu velho xerife Earl McGraw, que, com seu jeito preguiçoso de falar (até suas piscadas são lentas), mostra-se sempre divertido e magnético - e é realmente uma pena que ele morra já no início de Um Drink no Inferno. No entanto, o grande destaque de À Prova de Morte é mesmo Zoë Bell, que, dublê profissional (ela foi a responsável pelas ações da Noiva em Kill Bill), aqui ganha a chance de realmente interpretar uma personagem, revelando um carisma natural que, num mundo justo, deveria lhe garantir uma invejável carreira como atriz.

Eficiente até em seu desfecho excessivamente abrupto, À Prova de Morte é a comprovação de que, nas mãos de um diretor que conhece a fundo a técnica e a história do Cinema, até mesmo um exercício de estilo sem grandes ambições pode representar uma experiência apaixonante para quem ama e respeita a Sétima Arte.

17 de Julho de 2010

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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