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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
22/11/2023 22/11/2023 2 / 5 3 / 5
Distribuidora
Sony
Duração do filme
158 minuto(s)

Napoleão
Napoleon

Dirigido por Ridley Scott. Roteiro de David Scarpa. Com: Joaquin Phoenix, Vanessa Kirby, Tahar Rahim, Rupert Everett, Mark Bonnar, Paul Rhys, Ben Miles, Ludivine Sagnier, Edouard Philipponat, Miles Jupp, Youssef Kerkour, Sinéad Cusack, Sam Troughton, Catherine Walker.

Como discuti no parágrafo inicial de meu texto sobre Casa Gucci, que Ridley Scott dirigiu em 2021, o cineasta é dono de uma carreira cuja irregularidade é notória, oscilando entre trabalhos brilhantes e outros que parecem ter sido conduzidos da maneira mais equivocada possível – e é difícil acreditar que um realizador cujos três primeiros longas foram Os Duelistas, Alien e Blade Runner também seja o responsável por Um Bom Ano, Robin Hood, O Conselheiro do Crime, Alien: Covenant e este Napoleão. O curioso é que o egocentrismo do britânico tem se mostrado cada vez mais exacerbado em suas entrevistas, resultando em momentos patéticos como aquele em que sugeriu que a versão magistral dirigida por Abel Gance em 1927 é ruim a ponto de impedi-lo de vê-la até o fim – e tampouco creio ser apenas coincidência o fato de seu crédito de direção aparecer na tela justamente quando o personagem-título é visto pela primeira vez.


Não que a adaptação da vida de Bonaparte para o Cinema seja uma tarefa simples: vários diretores interessados em realizá-la tropeçaram no desenvolvimento de seus projetos ou em sua execução mesmo quando a abordavam de modo indireto, como Henry Koster em Désirée, o Amor de Napoleão (apesar da performance intrigante de Marlon Brando) ou, ainda mais frustrante, Stanley Kubrick, que por décadas tentou encontrar um modo de estruturar sua própria versão, morrendo sem ter sucesso na tarefa. Infelizmente, o roteirista David Scarpa tampouco o alcançou mesmo ignorando boa parte da trajetória do personagem, iniciando a narrativa durante a Revolução Francesa e saltando vários incidentes importantes até chegar aos seus dias finais na ilha de Santa Helena.

Vivendo o líder francês ao longo de pouco mais de três décadas a partir de seus 20 anos de idade, Joaquin Phoenix permite que constatemos qual será sua abordagem geral na composição do personagem já em sua primeira cena, quando pronuncia os diálogos quase sem abrir a boca e exibe um olhar exausto que se manterá desinteressado tanto nas vitórias quanto nas derrotas experimentadas pelo sujeito, como se este não se importasse de fato com os resultados. Mantendo-se inexpressivo na maior parte do tempo, o ator parece resgatar aqui muitas das escolhas feitas em sua caracterização brilhante em O Mestre, sendo possível enxergar seu Napoleão como um Freddie Quell mais bem sucedido (infelizmente, o que funcionava na obra de Paul Thomas Anderson não se encaixa na de Ridley Scott). Ainda pior, porém, é quando Phoenix pontualmente opta por adotar estranhos maneirismos (como na cena em que vê Joséphine se aprontar e manifesta seu desejo através de sons e movimentos que sugerem a vontade de subir em um cavalo), o que sacrifica qualquer coesão em sua performance. Como se não bastasse, sua impassividade é tamanha que se torna impossível conciliar a paixão expressada em suas cartas e o homem que mal parece ter energia para escrevê-las.

O que estas missivas conseguem sugerir, por outro lado, é a natureza patética do Napoleão concebido por Scott, cuja insegurança colide diretamente com a megalomania descontrolada – mas sem resultar na complexidade psicológica que um contraste assim poderia potencialmente gerar. Em vez disso, a vulnerabilidade de Bonaparte diante da esposa pouco diz sobre seus sucessos políticos e militares, ao passo que estes últimos em nada iluminam seu relacionamento. Do mesmo modo, se a decisão de Phoenix de evocar tensão e até medo nos momentos antes da batalha de Toulon é interessante ao humanizar uma figura lendária, o filme acaba por investir excessivamente nesta abordagem em determinados instantes, o que, em vez de torná-lo mais complexo, acaba por criar uma quase caricatura – como na cena em que ele foge dos membros do Diretório durante o golpe de 18 de brumário, chegando a cair em seu pânico, não importando se a comédia resultante é acidental ou intencional, já que não funciona de qualquer maneira.

Enquanto isso, Vanessa Kirby jamais encontra o caminho como Joséphine de Beauharnais, o que provavelmente se deve à forma indecisa com que o roteiro de Scarpa retrata a primeira esposa do protagonista: aqui, ela demonstra frieza absoluta em sua relação com o marido; ali, ela sofre com a partida deste; acolá, ela parece sentir um ódio profundo por ele – posicionamentos que se tornam estranhos por aparecerem descolados do contexto no qual são apresentados, soando mais como reflexo das necessidades momentâneas da narrativa do que como uma evolução orgânica do relacionamento. Assim, a única característica patente daquele casamento é sua toxicidade e nada mais, tornando difícil para o espectador aceitar a suposta paixão intensa, o amor quase mítico, que o filme pretende sugerir. De forma similar, Napoleão tenta nos convencer de que o impulso imperialista de seu personagem-título estaria relacionado de algum modo aos seus sentimentos por Joséphine, mas quando esta insiste para que ele diga que nada seria sem ela – e ele concorda -, a concessão soa injustificada e aleatória.

Igualmente confusa, por sinal, é a representação política de Bonaparte – tanto em suas motivações quanto em suas atitudes e mudanças ao longo dos anos, dando a impressão de que estas eram fluidas de acordo com as circunstâncias que o cercavam (e mesmo que isto tenha sido um componente em sua trajetória, o filme falha em apresentar qualquer centro ideológico do sujeito). Aliás, isto também se reflete em sua fama de grande estrategista e que Scott espera que aceitemos como mera afirmação, já que – com exceção de dois momentos (na invasão do forte em Toulon e na batalha sobre o lago congelado) – o máximo que testemunhamos é o protagonista gritando ordens generalizadas. A encenação destes confrontos, diga-se de passagem, carece profundamente de imaginação, limitando-se a repetir a mise-en-scène, a fotografia e a montagem que já vimos em dezenas de produções do tipo: campos vastos apresentados em planos gerais com seus líderes vistos em áreas elevadas (ou diante de seus centros de comando) enquanto observam os oponentes com lunetas e berram instruções sobre “penetrar flancos”, “avançar infantaria”, “esperem meu sinal para disparar” e demais clichês do gênero, o que é seguido por imagens de batalhões avançando em disparada um sobre o outro, atravessando suas respectivas linhas de frente e gritando enquanto explosões ocasionais erguem terra e partem membros. Durante as seis batalhas retratadas pelo cineasta, vale dizer, há apenas duas imagens que impactam pelo inesperado ou pela beleza: aquela que envolve o destino de um cavalo e as que exibem animais e homens afundando sob o gelo em meio ao sangue que derramaram.

E já que toquei no assunto, é decepcionante como a fotografia do polonês Dariusz Wolski, colaborador habitual de Scott, é tão sem vida em sua paleta dessaturada, escura e acinzentada, desperdiçando o cuidadoso trabalho de direção de arte de Arthur Marx e da figurinista Janty Yates (auxiliada por David Crossman, responsável pelos uniformes militares), que ao menos podem retratar a sujeira e a miséria da época com menos interferência negativa do colega de equipe. Aliás, um dos poucos instantes nos quais Napoleão admite mais cor na tela é um de seus mais marcantes: o que reencena a autocoroação do protagonista e que é uma recriação perfeita do quadro de Jacques-Louis David – e é claro que o diretor faz questão de incluir um ator interpretando o pintor em ação na cena para reafirmar sua precisão histórica.

Uma precisão que é apenas esporádica, devo apontar. Esta falta de preocupação com os fatos, que é recorrente na filmografia de Ridley Scott, não precisaria ser um problema tão grave caso tivesse propósitos dramáticos e contribuísse para fortalecer a narrativa – o que ele alcança na já mencionada sequência de Austerlitz, envolvendo o lago congelado, que dificilmente ocorreu como o retratado no longa, mas serve para ilustrar a habilidade estratégica de Bonaparte. No restante da projeção, contudo, as alterações soam gratuitas, como a passagem que o traz disparando contra as pirâmides no Egito, aquela que retrata sua mãe (Cusack) forçando-o a fazer sexo com uma desconhecida ou outra que o traz removendo uma bala de canhão do peito de seu cavalo (ou sendo ferido naquela mesma batalha). A justificativa de Scott para estas mudanças foi a de que os historiadores “não estavam lá” para saber, o que não apenas denota arrogância como uma profunda ignorância. O curioso é que em vários outros momentos ele insiste em adotar um recurso típico de produções históricas determinadas a comprovar a veracidade do que retratam, enchendo a narrativa de legendas que expõem datas, locais, nomes e profissões de personagens, o que é uma estratégia preguiçosa e burocrática.

O mais importante, porém, Napoleão falha em fazer: explicar por que o autoproclamado Imperador era uma figura tão venerada e o que movia suas ambições. Ao final, quando o vemos em Santa Helena, não sabemos praticamente nada além do que já sabíamos em sua primeira aparição – e o fato de personagens aparecerem e desaparecerem do filme sem aviso ou explicação não ajuda muito. Não é à toa que Scott já anunciou que uma versão de quatro horas de duração será lançada em breve no serviço de streaming da Apple, produtora do projeto, repetindo uma abordagem que o cineasta já abraçou várias vezes em sua carreira. Porém, se na época de Blade Runner ele não tinha direito ao corte final, isto já não é mais verdade há muito tempo, o que torna injustificável a decisão de lançar nos cinemas uma versão que não seja a que ele acredita ser a melhor possível (a não ser por motivos financeiros, obviamente).

E um artista que oferece ao público uma obra que sabe ser falha apenas para poder obrigar o espectador a revisitá-la posteriormente é alguém que, convenhamos, não merece muito este título. O que ao menos é coerente com um filme que jamais justifica a fama de seu biografado.

23 de Novembro de 2023

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Assista abaixo ao vídeo que gravei sobre o filme:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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