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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
11/02/2005 25/12/2004 4 / 5 5 / 5
Distribuidora
Duração do filme
170 minuto(s)

O Aviador
The Aviator

Dirigido por Martin Scorsese. Com: Leonardo DiCaprio, Cate Blanchett, John C. Reilly, Alec Baldwin, Alan Alda, Kate Beckinsale, Ian Holm, Danny Huston, Gwen Stefani, Jude Law, Frances Conroy, Adam Scott, Matt Ross, Brent Spiner, Stanley DeSantis, Edward Herrmann, Willem Dafoe, Kenneth Walsh.

Sempre fui fã incondicional de Martin Scorsese, um autêntico cineasta dos anos 70 que, ainda hoje, demonstra um interesse inequívoco por personagens à margem da Sociedade – o que, por si só, seria o bastante para lhe render elogios pela coragem, considerando-se que a produção cinematográfica norte-americana vem se mostrando cada vez mais aversa aos riscos (o que inclui projetos estrelados por figuras `difíceis`).


Assim, foi com contrariedade que me vi obrigado a observar as inúmeras falhas de seu último filme, Gangues de Nova York, que apresentava problemas nada típicos dos trabalhos do diretor, como uma narrativa caótica e sem foco que, em sua ânsia para recriar o cenário histórico, esquecia-se do mais importante: seus personagens. Para jogar sal na ferida, a Miramax ainda montou uma campanha multimilionária na tentativa de comprar um Oscar para Scorsese, usando a chantagem de que o brilhante cineasta jamais fora premiado – o que, de fato, é um absurdo, embora não justificasse sua premiação por um projeto pelo qual não merecia. Felizmente, Gangues de Nova York saiu de mãos vazias da premiação e, então, pude voltar a torcer para que Martin Scorsese, novamente focado no trabalho e não em estatuetas, retornasse à boa forma.

A torcida não foi em vão: embora protagonizado por um milionário excêntrico que não poupa esforços para realizar suas ambições (sejam estas a finalização de um longa-metragem ou a construção de um avião gigantesco), O Aviador poderia, à primeira vista, ser encarado como um filme completamente diferente dos projetos anteriores de Scorsese. No entanto, esta conclusão seria equivocada: afinal de contas, Howard Hughes é um personagem classicamente `scorsesiano` (se me permitem utilizar este termo). Solitário, socialmente deslocado e com uma visão distorcida do mundo, Hughes não é muito diferente do taxista Travis Bickle, do boxeador Jake La Motta, do aspirante a comediante Rupert Pupkin ou do paramédico Frank Pierce. Talvez a única grande diferença resida em sua fortuna, que obrigava seus contemporâneos a levá-lo a sério, mesmo que não quisessem fazê-lo.

Quando O Aviador tem início, encontramos Hughes obcecado em conseguir mais duas câmeras para rodar uma ambiciosa seqüência aérea de Anjos do Inferno, adicionando-as às 24 já planejadas (eu disse que ele era maluco) – o que leva o lendário Louis B. Mayer (um dos fundadores da MGM) a aconselhá-lo: `Por que você não pega seu dinheiro e o coloca no banco?`. Porém, o incidente das 26 câmeras não foi o único que ajudou a transformar as filmagens de Anjos do Inferno em uma das mais conturbadas da história de Hollywood: durante meses, Hughes suspendeu os trabalhos enquanto esperava encontrar nuvens `adequadas` (leia-se: em forma de seios gigantescos e repletos de leite) que servissem de cenário para o filme. Como se não bastasse, o milionário ainda resolveu refazer boa parte do longa depois de pronto a fim de incluir a recém-lançada novidade do som. Custando a vida de três pilotos, o projeto acabou tornando-se um imenso sucesso – e suas ousadas seqüências aéreas permanecem impressionantes ainda hoje, 74 anos depois.

Mas a característica mais interessante da personalidade de Howard Hughes era, sem dúvida alguma, sua versatilidade: dividindo sua atenção entre diversos projetos, o sujeito demonstrava um perfeccionismo exagerado em qualquer tarefa que assumisse, controlando todos os detalhes de suas empreitadas. Ao fundar uma companhia aérea, por exemplo, Hughes não se limitava a planejar a logística comercial da empresa ou suas rotas: do logotipo ao formato dos manches dos aviões, ele fazia questão absoluta de se envolver em todas as decisões. Da mesma forma, ao dirigir O Proscrito, o sujeito chegou a ponto de desenhar um sutiã que ressaltasse os atributos físicos de Jane Russell (obsessão que, em O Aviador, gera uma seqüência hilária na qual Scorsese dá uma alfinetada na conservadora MPAA, responsável pela classificação etária dos filmes para os cinemas norte-americanos).

Inteligente e sonhador (embora pragmático), o jovem Howard Hughes é uma figura fascinante e trágica, já que sua genialidade (não é à toa que Júlio Verne é citado tantas vezes ao longo da projeção) só era superada em dimensão por suas neuroses, fobias e compulsões – e o sempre talentoso Leonardo DiCaprio evita transformá-lo em uma caricatura grotesca ao retratar de forma sensível e contida a decadência psicológica do personagem: observem, por exemplo, como Hughes parece reconhecer os primeiros sinais de sua insanidade e a frustração que sente ao tentar, em vão, manter o controle sobre si mesmo. Sem jamais perder de vista a trajetória do personagem, DiCaprio mostra-se impecável em todas as fases da vida de Hughes – e até mesmo seu rosto juvenil (mas com grossas linhas de expressão) atua em benefício do filme, já que, posteriormente, acentua a degradação do protagonista.

Fugindo das definições fáceis, Howard Hughes apresenta-se, em O Aviador, como um indivíduo complexo, até mesmo contraditório: como alguém tão preocupado com a própria integridade física (chegando a ponto de temer a presença de bactérias nas maçanetas das portas) pode arriscar-se a testar aviões e dedicar-se a bater recordes de velocidade no ar? E como um sujeito tão controlador poderia escolher, como parceira, um verdadeiro ícone de independência, a inesquecível Katharine Hepburn? As cenas envolvendo o casal, diga-se de passagem, estão entre as melhores do filme – e a caracterização de Cate Blanchett merece elogios rasgados, já que captura com perfeição a postura confiante (até mesmo arrogante) de Hepburn, sua voz firme e a dicção imponente, quase calculista, da lendária atriz.

Da mesma forma, o elenco secundário de O Aviador revela-se quase perfeito: das pontas de Jude Law (como Errol Flynn) e Willem Dafoe (como um repórter) à ameaça representada pela ambição do empresário Juan Trippe (Alec Baldwin), o longa demonstra mais uma vez o talento de Martin Scorsese na condução de seus atores. Ainda assim, devo destacar duas atuações: a de John C. Reilly como Noah Dietrich, braço direito de Hughes e uma das pessoas que mais conheciam suas idiossincrasias (ao saber que o patrão será submetido a uma transfusão de sangue, Dietrich comenta: `Ele não vai gostar nada disso.`), e a de Alan Alda, que, fugindo dos simpáticos tipos que interpreta habitualmente, brilha ao assumir um personagem inescrupuloso e antipático. Ah, sim, eu disse anteriormente que o elenco secundário revela-se `quase perfeito`: o único ponto fraco diz respeito à apagada presença de Kate Beckinsale, que consegue a proeza de transformar a fabulosa Ava Gardner em uma figura nada interessante.

Mesmo sem criar seus característicos planos-seqüência, Scorsese conduz O Aviador com competência singular, mantendo a narrativa sempre focada e utilizando de forma fascinante as cores em cada uma das cenas (contando, nesta tarefa, com o auxílio do diretor de fotografia Robert Richardson), chegando a simular digitalmente a aparência das produções de diversas épocas. Obviamente seduzido pela chance de recriar a Hollywood da primeira metade do século (algo natural para um estudioso de Cinema), o cineasta se esbalda ao retratar o modo de vida das celebridades das décadas de 30 e 40, caprichando especialmente na festa em que Hughes conhece Errol Flynn. Além disso, Scorsese surpreende ao mostrar-se mais do que confortável durante a elaborada seqüência da queda de um avião em Beverly Hills, utilizando os efeitos visuais de forma convincente e intensa.

Sem jamais permitir que O Aviador se torne episódico (algo que seria de se esperar em um filme que cobre quase três décadas da vida de um indivíduo), Martin Scorsese ainda demonstra sua inteligência ao encerrar o longa no momento ideal, celebrando as conquistas de Hughes ao mesmo tempo em que deixa claro, para o espectador, que um futuro sombrio se aproxima (de fato, Hughes viria a se tornar um recluso em seus últimos anos de vida, não abordados pelo filme).

Talvez este não tenha sido o melhor trabalho de direção de 2004 (particularmente, acredito que Walter Salles, Pedro Almodóvar, Brad Bird e Michel Gondry mereciam a estatueta, embora sequer tenham sido indicados), mas, caso Scorsese finalmente receba seu primeiro Oscar, ninguém poderá dizer que o prêmio foi realmente injusto, ao contrário do que aconteceria caso isto ocorresse por Gangues de Nova York. Desta vez, Martin Scorsese fez por merecer.

P.S.: No fórum abaixo, um leitor reclamou da ausência, em meu artigo, do nome do roteirista John Logan, considerando-se que já mencionei em inúmeras ocasiões que não gosto de seus trabalhos. (E como poderia? Vejam a lista: Gladiador, Jornada nas Estrelas: Nêmesis, Morcegos, A Máquina do Tempo, Sinbad: A Lenda dos Sete Mares, O Último Samurai...). Pois bem: desta vez, Logan merece aplausos por seus esforços e fico genuinamente feliz que tenha sido indicado ao Oscar. Eu realmente deveria tê-lo mencionado no artigo e, honestamente, não sei por que não o fiz. Mas corrijo a injustiça agora.

26 de Janeiro de 2005

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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