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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
19/06/2019 19/06/2019 5 / 5 4 / 5
Distribuidora
Netflix
Duração do filme
121 minuto(s)

Democracia em Vertigem
Democracia em Vertigem

Dirigido e roteirizado por Petra Costa.

Toda história é, em maior ou menor grau, pessoal. O que move um artista a se expressar, a compartilhar seus processos internos, suas angústias e sua visão de mundo é algo que está intrinsecamente relacionado ao que está sendo narrado e a como está sendo narrado. Quando Clint Eastwood eleva um sniper à condição de herói, Scorsese retrata o egocentrismo niilista de um especulador trambiqueiro e Bong Joon Ho usa duas famílias de classes econômicas distintas num thriller, os subtextos são evidentes e refletem preocupações de seus realizadores. No universo dos documentários, o mesmo se aplica: a partir do instante em que escolhe um tema e se posiciona dentro deste, o cineasta já define seu ponto de vista, seja ao saltar de um canal a outro durante 24 horas da televisão brasileira, ao realizar uma viagem sonhada por um amigo precocemente morto ou ao discutir a lógica perversa das campanhas políticas. O fundamental, no gênero, não é a mítica “imparcialidade” – que nunca existe -, mas a ética ao jamais permitir que suas interpretações pessoais alterem os fatos em si. Defender um governo militar e autoritarista é questão de opinião (e falta de caráter, eu acrescentaria), mas afirmar, por exemplo, que “não houve ditadura no Brasil” ou que “os militares não torturaram nem mataram” é negar documentos e registros históricos, bem como a evidência incontestável dos cadáveres – encontrados e desaparecidos.


O que Petra Costa faz em Democracia em Vertigem é recontar a trajetória de nossa jovem e precocemente moribunda democracia a partir de um recorte pessoal, partindo da coincidência de ter quase a mesma idade desta para tentar compreender como em poucos anos fomos de um país repleto de esperança a um cenário de pesadelos – e reparem que “esperança” e “pesadelo” são também os meus recortes. Ao fazer isso, porém, a cineasta não se autoriza a inventar incidentes ou fatos, o que é fundamental. O espectador pode até não concordar com a afirmação de que a eleição de Lula representava a esperança da parcela mais miserável da população, mas não poderá negar que seu governo trouxe uma queda considerável da desigualdade econômica e que pessoas antes impossibilitadas de alimentar apropriadamente os filhos ou enviá-los para uma faculdade puderam fazê-lo pela primeira vez.

Iniciando a narrativa no dia da prisão de Lula sob a determinação de Sérgio Moro, Democracia em Vertigem volta algumas décadas no tempo para relembrar o histórico de repressão do Estado diante de manifestações e revoltas populares, passando pelo golpe militar de 1964, a reabertura democrática e as eleições de Collor e Lula, chegando finalmente às jornadas de junho de 2013, ao processo que culminou na derrubada de Dilma, à ascensão de Temer e à vitória de Bolsonaro em 2018. Trata-se de um período de extensão considerável que Petra resume de modo didático através de imagens de arquivo, registros pessoais e entrevistas inéditas em busca de respostas que muitas vezes soam ao mesmo tempo óbvias e inescrutáveis, previsíveis aqui e localizadas em pontos cegos ali.

É claro que, como seria inevitável ao discutir os últimos 20 anos da política brasileira, o filme se concentra especialmente na figura de Lula, resgatando seus discursos da época do sindicalismo (através de imagens feitas por Leon Hirszman para seu essencial ABC da Greve) e criando uma ilustrativa e crítica montagem que escancara as mudanças na postura do ex-presidente ao longo de suas várias campanhas eleitorais, indo do discurso antissistema até adotar uma retórica bem mais moderada e conciliatória a fim de se tornar palatável para o mesmo mercado que sempre o abominou e viria a apoiar com vigor a queda de Dilma e a eleição de Bolsonaro. Este desapontamento, contudo, não a impediu de votar no candidato quando atingiu a idade mínima para se tornar eleitora – e a realizadora jamais adota a estratégia antiética de posar de isentona para manipular o espectador, incluindo passagens nas quais surge, mal saída da adolescência, entusiasmada com a vitória para a qual contribuiu com sua cédula (um entusiasmo que, de novo, não a inibe de lamentar o pragmatismo necessário para se obter maioria no Congresso através de alianças com partidos como o PMDB).

Mas é ao analisar a complexa cadeia de fatores que levaria ao golpe parlamentar de 2016 (ela usa a palavra “impeachment”; “golpe” é um recorte meu – é assim que perspectivas funcionam) que Petra e Democracia em Vertigem ganham força, começando já com a instigante análise semiótica das posturas de Lula, Marisa Letícia, Dilma e Temer ao descerem a rampa do Planalto depois da posse de Rousseff, quando os três primeiros surgem felizes de braços dados e o último caminha isolado e tenso. A partir daí, o documentário demonstra os efeitos da cooptação das manifestações de junho de 2013 pelas forças da direita (algo que infelizmente previ) e como a Lava-jato rapidamente passou de uma empreitada (com o perdão do trocadilho) com potencial transformador para um esforço partidarizado de demonização sistemática da esquerda, galvanizando ainda o sentimento difuso de insatisfação de uma classe média ressentida para minar o apoio ao governo de Dilma – apoio que, considerando as críticas crescentes desta ao sistema bancário e sua decisão de limitar a influência do PMDB, seria essencial para mantê-la no poder. E como qualquer um que acompanhou as coberturas das manifestações ao longo dos anos é capaz de apontar, a divisão demográfica entre os grupos favoráveis e contrários ao golpe fala por si só, contrapondo um mar de branquitude raivosa às lágrimas de multidões diversificadas que mal podiam acreditar no que estava acontecendo.

Não menos revelador é constatar como a própria diretora, em uma admissão pouco lisonjeira, confessa sua ignorância inicial com relação às razões alegadas para o impeachment de Dilma, que acreditou terem base em acusações de corrupção em vez de se limitarem a manobras fiscais sem qualquer elemento de benefício pessoal – e se uma cineasta com amplo acesso à informação poderia se confundir, quais as chances reais de que a população de modo geral estivesse sendo alimentada com fatos em vez de com propagandas da mídia conservadora? De maneira similar, como combater a desinformação veiculada em escala massacrante durante o processo contra Lula se a lógica tortuosa de Moro e seus comparsas (“comparsas” é meu recorte – mas acho que todos já entenderam como funciona) alegava que a falta de provas de que o ex-presidente era dono do tríplex era evidência de sua ação para ocultá-lo?

Sob um aspecto narrativo, diga-se de passagem, o trabalho de Petra é facilitado pelo contraste dramático fascinante entre seus dois personagens principais: se Lula é uma figura expansiva, comunicativa e brincalhona, Dilma surge como um rochedo de fortaleza, encarando seus algozes com o mesmo olhar inabalável que exibia na icônica foto que a trazia, depois de dias de tortura, cercada por juízes militares que escondiam os rostos enquanto a ré mantinha a cabeça erguida em postura desafiadora. Assim, as interações da realizadora com ambos e também aquelas mantidas entre os dois resultam com frequência em dinâmicas que muito revelam sobre aquelas pessoas, documentados e documentarista, com efeitos que variam do humorístico ao tocante.

E assim chegamos a Petra Costa.

Norteando a narrativa com a mesma voz melancólica e de ritmo suave que guiou sua estreia na direção, o maravilhoso Elena, e que foi brevemente ouvida em seu segundo longa, O Olmo e a Gaivota (que elegi como meu favorito de 2015), Petra confere um tom de lamento ao que testemunhamos, colorindo de tristeza uma história cujo final trágico atira sombras sobre todo o filme, mesmo nos instantes de maior otimismo. Além disso, ciente de que seu documentário é parte de uma discussão que o gênero já vem mantendo com o golpe de 2016, ela evita refazer os passos dados por obras como O Processo e O Muro, explorando a própria biografia e a de sua família para encontrar paralelos e pontos de referência relevantes para a formação de seu olhar, incluindo o fato de seu avô ter sido um dos fundadores da empreiteira Andrade Gutierrez, que manteria relações com praticamente todos os governos das últimas cinco décadas e teria diversos de seus executivos implicados em esquemas de propina e caixa dois. O irônico é que a franqueza da diretora quanto a esta ligação acabaria sendo usada por alguns – incluindo integrantes da esquerda – para atacar sua legitimidade ao discutir o período, ignorando que, além de não ser responsável por sua ascendência, o importante não é de onde ela veio, mas que caminho decidiu percorrer por si mesma.

E este caminho é o de uma reflexão dolorida sobre um país que de tempos em tempos insiste em se destruir – e a fragilidade de nossa democracia ganha um símbolo pertinente no plano em que vemos um funcionário da Câmara dos Deputados reconstituindo cuidadosamente a imagem da bandeira brasileira desenhada no carpete da Casa.

Pois é assim que um poeta interpreta e comunica o mundo ao seu redor, descobrindo metáforas e alegorias no cotidiano a fim de exprimir não só o que vê, mas o que sente diante disso – e Petra Costa, como seus filmes anteriores comprovaram fartamente, tem alma de poetisa. Democracia em Vertigem não é “imparcial” porque não deveria sê-lo e agiria com desonestidade caso tentasse se vender como tal. Somos – todos – frutos de nossas histórias e do que forja nossa relação com a sociedade. Em outras palavras: somos seres políticos desde que nascemos – e, no caso de Petra, isto diz respeito inclusive ao seu nome, que, como ela revela, é uma homenagem ao mentor de seus pais, Pedro Pomar, que foi assassinado pelos militares. Não há como ficar mais pessoal do que isso.

E isto não é um recorte, mas um fato.

03 de Fevereiro de 2020

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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