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Críticas por Pablo Villaça

Datas de Estreia: Nota:
Brasil Exterior Crítico Usuários
08/08/2024 02/08/2024 4 / 5 3 / 5
Distribuidora
Warner
Duração do filme
105 minuto(s)

Armadilha
Trap

Dirigido e roteirizado por M. Night Shyamalan. Com: Josh Hartnett, Ariel Donoghue, Saleka Shyamalan, Alison Pill, Hayley Mills, Jonathan Langdon, Marnie McPhail, Vanessa Smythe, Kid Cudi, Russ, M. Night Shyamalan.

Não creio que cotações sejam um critério essencial na crítica cinematográfica. Aliás, chegam a ser um aspecto negativo da profissão, já que muitos leitores se contentam em verificar apenas o número de estrelas conferido a um filme, ignorando totalmente os argumentos apresentados no texto ao qual estas foram ancoradas. Dito isso – e apenas como um indicativo absolutamente superficial -, é curioso perceber como minhas cotações para os trabalhos de M. Night Shyamalan foram diminuindo de forma regular: 5 estrelas para O Sexto Sentido, 4 para Corpo Fechado, 3 para Sinais, 2 para A Vila e apenas uma para A Dama na Água e Fim dos Tempos. O que havia se iniciado como uma promessa aos poucos se tornou uma ameaça. E então algo curioso aconteceu: aos poucos, com uma velocidade bem menor, a tendência começou a se inverter – o que resultou em 2 estrelas para O Último Mestre do Ar, Depois da Terra, A Visita, Fragmentado, Tempo e Vidro. Se o brilhantismo do início estava longe de ser resgatado, ao menos a mediocridade havia substituído a tortura.


Pois o que temos em Armadilha é um embate entre o péssimo roteirista que Shyamalan se tornou e o excelente diretor que demonstrou ser em seus primeiros longas (e mesmo em certas passagens de seus piores) – e o fascinante é constatar como este, inspiradíssimo, consegue disfarçar as falhas daquele por piores que sejam, construindo uma narrativa eficiente o bastante para que os vários furos da trama se tornem quase um detalhe, uma imperfeição que, por contraste, ressalta as virtudes de todo o resto.

Contando uma história relativamente simples, Armadilha acompanha o bombeiro Cooper (Hartnett) e sua filha adolescente Riley (Donoghue), que se preparam para assistir ao show de Lady Raven (Saleka Shyamalan, filha do cineasta), uma cantora cujos fãs praticamente formam um culto de personalidade. Chegando à arena na qual o evento acontecerá, Cooper fica intrigado com a grande presença de policiais, logo descobrindo que estão ali para capturar um serial killer que retalha suas vítimas (daí o apelido “O Açougueiro”) e que teria deixado parte do recibo de seu ingresso em um de seus esconderijos. Apreensivo com a informação – já que ele é justamente o Açougueiro -, o sujeito passa o espetáculo inteiro tentando encontrar uma forma de escapar da arapuca, tendo sua tarefa dificultada pela presença de uma psiquiatra criminal (Mills) que parece antecipar todas as suas ações.

Ocupando um pouco mais da metade do filme, este jogo de gato e rato é eficaz dramaticamente graças a dois elementos: o suspense gerado a partir dos esforços de Cooper para descobrir uma saída e a dinâmica estabelecida entre este e a filha. Conferindo sinceridade ao afeto que o criminoso sente por Riley, Josh Hartnett projeta este amor em cada olhar que lança para a garota e no modo como sorri ao vê-la empolgada e feliz – e vê-lo registrar com a câmera do celular o instante em que ela dança ao lado de outras fãs é algo que se torna ainda mais natural (e com o qual facilmente nos identificamos) quando, numa escolha óbvia que qualquer pai faria, ele filma um monitor que registra Lady Raven e move a lente até chegar nas jovens, provavelmente orgulhoso da própria ideia. Enquanto isso, Ariel Donoghue não apenas retrata com energia o entusiasmo adolescente de Riley, que talvez esteja experimentando o melhor dia de sua vida, como é hábil ao evocar o orgulho que esta sente do pai ao vê-lo ajudar uma outra fã cuja pressão despencou em função da emoção e da exaustão, levando o espectador a se preocupar com o choque que experimentará caso descubra a verdade sobre Cooper.

Mas se Hartnett traz calor humano ao personagem em suas interações com a filha, sua performance se torna ainda melhor nos instantes em que deve expressar a insanidade homicida do “Açougueiro”: sim, em certos pontos Shyamalan e o diretor de fotografia Sayombhu Mukdeeprom dão uma ajudinha (como ao esconderem seus olhos com sombras ameaçadoras no instante em que conversa com a mãe de uma colega de Riley), mas em boa parte da projeção o ator oferece momentos nos quais a máscara do assassino parece cair à nossa frente – como, por exemplo, quando subitamente um sorriso excessivamente intenso (e, portanto, que nos incomoda) surge durante uma conversa com o vendedor Jamie (Langdon), permitindo que percebamos como nem sempre Cooper consegue simular as reações de uma pessoa “normal” e indicando sua natureza sociopata (igualmente reveladora é a maneira como ele aqui e ali sorri enquanto os olhos seguem inexpressivos). Ao mesmo tempo, ele projeta a inteligência do personagem através do modo cuidadoso com que analisa o ambiente e as pessoas à sua volta, o que se contrapõe à leveza que manifesta ao observar a filha.

Ainda assim, é importante salientar como Shyamalan e Mukdeeprom colaboram para criar esta aura de estranhamento em torno de Cooper não só através da utilização de planos que o trazem olhando diretamente para a câmera, mas também ao manterem parte de seu rosto fora de campo (o que também ressalta como mantém um lado de sua personalidade sempre oculto). E mais: incluindo passagens nas quais o comportamento do bombeiro destoa do que se encontra ao seu redor – como ao não acender a lanterna de seu celular em determinado instante do show (o que também expõe sua incapacidade de perdoar quem considera um desafeto) -, o cineasta sugere como ele se mostra intrigado diante das ações dos demais, o que muito revela sobre seu temperamento. Igualmente digna de nota é a forma com que Shyamalan, ao trazer Lady Raven se agachando para verificar se uma funcionária que tropeçou está bem, planta a informação de que a cantora é uma pessoa cuja índole generosa pode ser utilizada para manipulá-la – uma sutileza que o diretor frequentemente deixou de lado nos últimos anos. Para completar, é satisfatório constatar como o realizador é capaz de alterar elementos estilísticos recorrentes de sua obra quando isto serve ao filme, o que aqui pode ser comprovado na montagem mais veloz, com uma média de duração dos planos bem inferior ao seu habitual.

Infelizmente, se um dos pontos fortes de Armadilha reside no amor de Cooper pela filha, é justamente o afeto e o orgulho de Shyamalan por sua própria descendente que compromete a segunda metade do filme, quando altera o foco da narrativa para que a importância de Lady Raven cresça significativamente – e se Saleka Shyamalan tem um desempenho convincente como cantora-estrela, o mesmo não pode ser dito sobre seus talentos como atriz. Aliás, a incapacidade da jovem de projetar as emoções intensas da personagem serve apenas para evidenciar a fragilidade do roteiro, expondo como os incidentes seguintes ao show são implausíveis e dependem de uma suspensão de descrença considerável por parte do espectador. De maneira similar, o protagonista-vilão passa a exibir uma força física tão descomunal que os elementos que o haviam tornado humano para o público quase se perdem, chegando a um ponto no qual é até possível desconfiarmos que se trata de mais uma figura do universo de Corpo Fechado-Fragmentado-Vidro.

O que nos traz a algumas das decisões mais inverossímeis do sujeito (e aqui devo oferecer um aviso de spoilers): o que ele espera que irá acontecer, por exemplo, depois de revelar sua identidade para Lady Raven? O que pretende fazer depois que esta avisar a polícia? E será que em nenhum momento lhe ocorreu que a melhor estratégia seria não fazer nada e apenas passar pelo interrogatório ao deixar a arena? (Entendo que para o filme sua decisão de escapar é fundamental, mas para o personagem, supostamente tão inteligente, trata-se de uma postura pouco racional.) Por outro lado, ele não é o único a agir impensadamente: se sua esposa (Pill) suspeitava de suas ações homicidas, por que arriscar expô-lo em uma situação na qual ele se encontraria sozinho com a filha do casal, arriscando não apenas a segurança da menina, mas sua saúde mental? E já que estou me concentrando nos problemas do roteiro, qual é o propósito do tal “The Thinker” (Kid Cudi) na narrativa?

Emendando vários finais uns nos outros, como se não soubesse exatamente como concluir o longa, Shyamalan demonstra cada vez mais como se beneficiaria, como diretor, caso investisse seus talentos em roteiros escritos por outras pessoas – talentos tão notáveis que, como já dito, quase nos fazem ignorar sua incompetência como roteirista e ressurgem com a promessa de um retorno aos resultados do passado. Pois se mantiver o mesmo caminho que percorreu até aqui, invertendo apenas sua direção, devo notar que, considerando as 3 estrelas dadas a Batem à Porta e as 4 de Armadilha, seu próximo filme pode ser uma nova obra-prima.

04 de Setembro de 2024

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Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

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