Datas de Estreia: | Nota: | ||
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Brasil | Exterior | Crítico | Usuários |
26/01/2023 | 07/10/2022 | 5 / 5 | 5 / 5 |
Distribuidora | |||
Universal | |||
Duração do filme | |||
158 minuto(s) |
Dirigido e roteirizado por Todd Field. Com: Cate Blanchett, Noémie Merlant, Nina Hoss, Sydney Lemmon, Sophie Kauer, Mila Bogojevic, Allan Corduner, Zethphan Smith-Gneist, Fabian Dirr, Sylvia Flote, Julian Glover e Mark Strong.
Amy. Rodin. Zappa. Milk. Whitney. Senna. Belushi. Ray. Ali. Lincoln. Janis. Trumbo. Milius. Benedetta. Brando. Judy. Tina. Capote. Nixon. Marley. Jobs. Elvis. Crumb. Estamira. Klitschko. Pina. Elizabeth. Tár. Documentários ou dramatizados, todos estes longas são biografias de indivíduos tão célebres (ou, no mínimo, fascinantes) que seus títulos podem se resumir a uma palavra: o nome ou sobrenome do protagonista – que, no caso dos dois últimos, ganham o rosto da mesma atriz.
Vivida por Cate Blanchett, Lydia Tár é a primeira mulher a ocupar o posto de condutora da Filarmônica de Berlim e uma das poucas pessoas a alcançar o EGOT (leia-se: a vencer o Emmy, o Grammy, o Oscar e o Tony). Discípula de Leonard Bernstein, a maestro (ela refuta a forma feminina da palavra) ficou especialmente conhecida por gravar as nove sinfonias compostas por Mahler e, claro, por um escândalo que, vale apontar, não foi incluído em sua autobiografia, Tár on Tár. Quase todos estes dados são mencionados logo na abertura do filme pelo escritor Adam Gopnik (vivido pelo próprio) em uma entrevista com a protagonista, cuja página na Wikipedia é por vezes vandalizada por detratores anônimos e que desde o lançamento do longa concedeu entrevistas e passou a atualizar com frequência sua conta no Twitter – na qual ainda não discutiu sua parceria com o bilionário (e condutor amador) de sobrenome Kaplan, com o qual mantém uma fundação para estimular a formação de mais maestrinas.
Ah, sim: o bilionário em questão, Eliot Kaplan (interpretado por Mark Strong), é apenas baseado no real (e falecido) Gilbert Kaplan. Já Lydia Tár é uma figura completamente ficcional.
É compreensível, porém, que muitos tenham passado a tratá-la como uma pessoa real em redes sociais e alguns acreditado de fato em sua existência: com um currículo concebido em detalhes pelo roteiro de Field, a trajetória profissional de Tár é convincente e contém um número suficiente de encontros com a realidade (como uma participação no podcast de Alec Baldwin e a já mencionada entrevista com Gopnik) para plantar a dúvida na mente do público. Além disso (e igualmente importante), a caracterização de Cate Blanchett é rica ao se equilibrar entre tiques, maneirismos e naturalidade, como ao ocasionalmente tocar na orelha esquerda como se ajustasse um fone de retorno (ou apenas a coçasse) durante a entrevista inicial ou ao passar a mão sobre a toalha da mesa do restaurante, como se a limpasse de farelos, na cena seguinte. Do mesmo modo, sua energia ao conduzir a orquestra resulta em gestos precisos que, mesmo comuns entre maestros, sugerem um estilo pessoal, particular, de realizar seu trabalho. E mais: ao saltar organicamente entre o alemão e o inglês nestas passagens, a atriz evoca os esforços da condutora para comunicar suas intenções musicais da forma mais cuidadosa possível aos integrantes da filarmônica, sendo notável também como a atriz projeta a eficiência da protagonista ao lidar com todos os aspectos de sua função, do estudo das partituras às discussões técnicas sobre a gravação da performance, passando pela administração da orquestra, as reuniões com seus financiadores e os encontros com seus aprendizes.
Projetando inteligência em cada cena, Blanchett aqui tem a oportunidade de criar uma daquelas performances que transcendem o próprio ator – um fenômeno raro (e por isso mesmo tão valioso) que me lembro de discutir com relação à versão de Salieri vivida por F. Murray Abrahams em um dos textos mais antigos do Cinema em Cena, há mais de um quarto de século(!): presente em todas as cenas do filme, a atriz reconhece que são as contradições que tornam Lydia Tár humana e, para ilustrá-las, evidencia o amor daquela mulher pela filha ao mesmo tempo em que ressalta sua impaciência quando esta invade seu espaço de trabalho ou – ainda mais importante – nos leva a perguntar como uma pessoa tão organizada, racional e metódica pode tomar atitudes tão irresponsáveis, tolas e com tendência a trazer o caos para a própria vida.
É claro que a abordagem narrativa da direção de Todd Field também contribui para criar a impressão pontual de estarmos assistindo a algo documental: ao acompanhar uma aula ministrada pela personagem-título, por exemplo, Field e o diretor de fotografia Florian Hoffmeister investem em um plano contínuo, sem cortes, de dez minutos de duração, deslocando-se pelo auditório de maneira fluida, mas disciplinada ao ressaltar cada ponto da interação entre a maestro e um aluno, Max (Smith-Gneist), partindo do questionando amigável até chegar ao confronto. Já na cena em que Tár conversa com Kaplan no restaurante, o cineasta e a montadora Monika Willi são hábeis ao criar dinamismo em uma conversa burocrática, destacando o olhar ansioso do bilionário ao pedir que a outra compartilhe algumas de suas escolhas criativas ao conduzir uma composição de Mahler (e é revelador que ela acabe cedendo, mas insistindo a seguir para que o sujeito invista na originalidade).
E se Mark Strong projeta bem a natureza patética de Kaplan, Nina Hoss faz um trabalho igualmente fabuloso como Sharon, esposa de Tár, sugerindo através de seus olhares toda a dor que esta provoca de forma tão casual, quase como se não se importasse com o estrago que deixa em seu caminho. Contudo, longe de ser uma vítima, Sharon demonstra força ao impor seus limites, levando o espectador a perceber como foi essencial para que a companheira atingisse o tão cobiçado posto que passou a ocupar em Berlim. Enquanto isso, Noémie Merlant, tão inesquecível em Retrato de uma Jovem em Chamas, extrai o máximo de seu tempo em tela ao evocar a competência de Francesca e como esta se divide entre a ambição profissional e a ética pessoal, suportando (com sofrimento) as ações reprováveis de Lydia por acreditar que esta saberá recompensá-la no instante certo.
E é esta dinâmica que oferece à protagonista as condições ideais para exercitar a crueldade em sua busca da satisfação sexual: mostrando-se artisticamente colaborativa para ganhar a confiança de suas presas, Tár aprendeu, ao longo dos anos, a manipular com imensa eficiência todos ao seu redor, oscilando entre a afabilidade e a secura sem hesitar – uma dualidade que Field simboliza através dos vários planos nos quais a vemos refletida em espelhos (já discuti o uso simbólico de reflexos ao escrever sobre Cisne Negro) e nos vários momentos em que ela surge higienizando as mãos (outro gesto carregado de significados). Por outro lado, em um mundo pós-#MeToo, não é surpresa que as ações de Tár gerem repercussões sérias – e aqui vale destacar como o design de som, associado à inquietude crescente da câmera, nos leva a constatar como a condutora vai perdendo o controle da situação ao se mostrar perturbada com o tique-taque de um metrônomo, com a vibração do painel do carro, com os cliques da caneta de um assistente e, claro, com gritos à distância que ecoam sem revelar sua origem.
Ou talvez revelem, representando não uma pessoa em particular, mas as várias vítimas que Tár certamente deixou pelo caminho – uma teoria reforçada pelo fato de jamais vermos o rosto de Krista (embora sua presença seja sugerida desde o princípio, quando vemos as costas de uma mulher misteriosa centralizada na tela durante a entrevista conduzida por Gopnik).
Trazendo ainda discussões instigantes sobre a distinção entre Arte e artista, Tár é um filme que se permite seguir tangentes tematicamente complexas como ao enfocar a conversa com um aluno que, por pertencer a uma minoria racial e se identificar como pangênero, se recusa a tocar obras de Bach em função da misoginia deste, mas não vê problema na obra de Edgar Varèse mesmo que este fosse racista e antissemita – o que reflete uma condenação seletiva e repleta de contradições que frequentemente se apresenta em debates sobre figuras históricas controversas.
Fascinante do primeiro ao último plano (cuja ironia, por sinal, encerra a narrativa com brilhantismo), Tár é a constatação de como Todd Field se estabeleceu como um cineasta de peso mesmo contando com apenas três longas no currículo (antes vieram Entre Quatro Paredes e Pecados Íntimos) – e que ele abra a narrativa com o que normalmente seriam os créditos finais é a prova de como, indo na contramão do egocentrismo da personagem que aqui explora, ele sabe reconhecer sem ressalvas a importância da natureza colaborativa da Arte que cria.
Que ele se prepare para ler os protestos veementes de Lydia Tár em suas redes sociais.
26 de Janeiro de 2023
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